Dualidade do ser e do dever-ser
Written on 15:39 by fedark9
Trabalho de Hermêneutica Jurídica
Tradicionalmente espera-se da decisão judicial um resultado “justo”, que tenha sido julgado por uma autoridade competente, e esta tendo analisado o caso a luz do direito e de maneira imparcial. De acordo com o senso comum facilmente se vislumbra que grande parcela da população acredita no mito do juiz imparcial, aquele que no momento do seu trabalho está isento de valores próprios e sua única função seria subsumir fatos a normas, de nenhuma maneira seus juízos de valores interferem nisso.
Esse juiz passivo se tornaria um escravo da lei e das partes, uma máquina cega de produzir decisões por definição justas e adequadas. Ele poderia ser facilmente substituído por, quem sabe, um computador que simplesmente conhecesse, interpretasse, escolhesse uma opção entre as respostas possíveis a priori, apresentando assim a solução para o problema. Bastaria que esta máquina-robô conseguisse conhecer dos fatos e selecionar entre as opções relevantes, e então seria possível substituir os juízes humanos por máquinas aptas a serem efetivamente “terceiros imparciais”, inclusive porque não seriam compostos da mesma matéria humana e imperfeita com que são feitos as partes e os julgadores. Essas máquinas não sentiriam e não se deixariam influenciar pelos objetos da cognição estando por isso aptas a darem efetivamente uma solução impessoal e imparcial. (LEAL JÚNIOR, Cândido Alfredo Silva, 2003, p.80)[1]
Esse pensamento remonta a visão da escola da exegese, nascida na França do século XIX, mas naquele contexto ela tinha muito mais sentido do que atualmente, pois lá eles tinham passado por uma revolução há pouco tempo e havia todo aquele clima de instabilidade então o intuito era solidificar as novas bases[2]. (CAMARGO, 2003, p.66).
Atualmente vivemos numa república democrática, em um contexto extremamente mais complexo e plural do que naquela época, ainda hoje se fala em neutralidade do juiz em relação à coisa julgada. E segundo Camargo (2003, p.136) [3] “a discussão metodológica atual confirma a importância da segurança e da ordem [...]. O que se discute é a racionalidade desse novo saber que trabalha com valores.”
Para Camargo (2003, p.49)[4] a marca valorativa do direito abrange tanto os valores que arquitetam a intenção de quem faz a lei, quanto os valores da sociedade onde ele está inserido. Um dos questionamentos feitos é o de como o juiz sendo uma pessoa (com ideologias, sentimentos, entre outros) pode julgar objetivamente um caso, sendo o direito fruto da valoração humana?
A ação interpretativa parte de um conjunto de conceitos e conhecimentos prévios e, de certa forma, sedimentados, que nos possibilita alcançar suas conclusões com um mínimo de previsibilidade [...] especificamente no campo jurídico, contamos com todo um arcabouço teórico que condiciona sua interpretação. É o seu viés dogmático, composto pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência. (CAMARGO, 2003, p.51)
Existirão aqueles que dirão que a lei deve estar acima dos juízes, mas estes não entendem que não existe direito sem interpretação, que interpretar é selecionar uma possibilidade de sentido entre várias e essa seleção é motivada pela maneira como vemos o mundo, e no caso da decisão judicial é claro que o elemento da argumentação das partes também influencia intensamente no resultado final.
Quem envia a mensagem comunica um complexo simbólico que é selecionado pelo ouvinte. Este escolhe, por assim dizer, do complexo, algumas possibilidades que não coincidem necessariamente com a seletividade do emissor [...]. Podemos chamar essa seletividade de interpretação. Interpretar, portanto, é selecionar possibilidades comunicativas da complexidade discursiva. (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p.260)[5]
Claro que não estou dizendo aqui que o juiz somente aprecia de acordo com sua maneira de ver o mundo, pois ele terá que fundamentar sua decisão de acordo com os princípios legais, só estou reiterando que a máxima “na clareza da lei não há interpretação” tão repetida durante muitos anos, não tem muito sentido.
Mas ao mesmo tempo em que a neutralidade é uma meta praticamente inalcançável, precisamos de certa segurança no mundo jurídico para não afundarmos nas arbitrariedades. O caráter dogmático do direito age como uma garantia, já que apesar do intérprete ter o poder de escolha, ela será feita entre as opções possíveis, não é dado ao juiz o poder de distorcer a norma ao ponto de entrar em concordância com sua ideologia. E em casos de abuso existem as autoridades hierarquicamente competentes, o recurso existindo como uma maneira de coibir os excessos de alguns magistrados.
[1] LEAL JÚNIOR, Cândido Alfredo Silva. A influência da identidade do juiz ( primeira pessoa) nos processos de cognição e decisão judicial (terceira pessoa). Revista CEJ, n.23. Disponível em:
[2] CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.66.
[3] CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Op.cit. p.136.
[4] CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Op.cit. p.49.
[5] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.4.ed. São Paulo:Atlas, 2003.
